Do Rio a Montes Claros
Do Rio a Montes Claros
(Parte do livro ‘Semeando a Boa Semente’ do Pr. João Gregório Urbieta).
O Dr. Watson recebeu um telegrama nestes termos: “Montes Claro – Diga Urbieta embarcar noturno no dia primeiro pt Condução espera quilômetro mil pt Ass. Crosland.”
Nunca antes ouvira eu tal nome. Todavia era uma chamada e mister se fazia obedecer. Dirigi-me à “Central” antes do horário do noturno. Estávamos em 1 de fevereiro de 1924. O plano era permuta de serviço nesse ano. O pastor Jurandir Freire viria substituir-me nas oficinas da Casa Publicadora Batista, no Rio, e eu iria substituí-lo na direção da Igreja Batista de Montes Claros (MG), depois colocaríamos novamente cada um em seu respectivo lugar.
Precisávamos comprar as passagens antes de despacharmos as malas, para gozarmos de 30% de abatimento. Fomos à bilheteria mineira.
– Dê-me duas passagens de segunda para o Km Mil.
– Não vendemos passagens para o Km Mil; somente para Corinto.
– Então, duas passagens para Corinto.
– Não vendemos passagens para o Mineiro enquanto o Paulista não chegar.
Ficamos por ali aguardando a chegada do trem Paulista. De repente, ouve-se a campainha que vem soando. Era o Paulista que entrava na estação. Saio apressado para comprar as passagens. Qual, porém, não foi a minha surpresa ao contemplar uma enorme fila de gente à minha frente! Eu o primeiro passei a derradeiro! Minha temperatura se elevava e o meu corpo umedecia-se!
Por fim, compro as passagens, corro ao chefe, mostro-lhe as passagens e digo:
– Meu chefe, faz o favor de despachar a minha mala de roupa!
– Não há mais tempo.
– Seu chefe, só agora consegui as passagens e não posso viajar sem a mala.
– Deixe-a com algum amigo para despachá-la depois.
– Não tenho nenhum amigo aqui, sou de Mato Grosso e estou de trânsito para Minas. Se embarcar sem o despacho da mala perdê-la-ei e se eu ficar por causa das malas, perderei as passagens.
Um carregador que observava a minha lamúria, segredou-me ao meu ouvido:
– O senhor dá uma gorjeta ao chefe que ele despacha a mala.
– Sim dou, pois não – respondi-lhe eu.
Ele aproxima-se do chefe e fala-se auricularmente. O chefe, então, grita ao seu ajudante:
– Olha, ponha esta mala na balança.
Aí aparece o ajudante e reclama:
– Ah, mas isto já está fora de hora – tira o boné e coça a cabeça resmungando.
Chega-se novamente o carregador junto de mim e fala-me baixinho:
– O senhor dá uma gorjeta também ao ajudante do chefe?
– Sim dou, como não.
Volta o mediador junto ao ajudante e cochicha. E o tal chama o seu colega:
– Oh, vem cá, ajuda-me a colocar esta mala na balança.
– É, vamos ver isso – respondeu-lhe o outro – isto não pode ser fora de hora.
E dizendo assim olhava-me de soslaio e eu que já percebia a manha, esfreguei o indicador no polegar e gesticulei a minha cabeça como a lagartixa na parede, e zaz-traz, puseram a mala na balança e entregaram-me o conhecimento. Dei gorjetas aos quatro ratões, inclusive ao carregador como intermediário.
Parecia-me que havia despertado de um terrível pesadelo! Respirei novo ar e fui exclamando: Ó, meu Brasil querido, até quando seremos vítimas dos ladrões que pulam incólumes no teu seio? Ó Brasil de funcionários!
Viajamos a noite toda, banco duro de segunda, trem apinhado.
Chegamos a Corinto, e a mala nada!
– Deve chegar mais tarde pelo misto – diz-nos o chefe da estação.
Chega o misto, e nada de mala.
– Com certeza, pelo noturno – afirma o chefe.
Pernoitamos no hotel e nosso dinheirinho minguado se esgotava. O noturno chegou, mas a mala, não. Então fomos de Castro ao Km Mil, encontrarmo-nos com o condutor para avisá-lo de que era necessário esperarmos a chegada da nossa mala para prosseguirmos viagem. Diz-nos ele:
– Nós não podemos pernoitar, pois não há lugar nem para os animais. Mas daqui a três léguas mora um capiau que pode hospedar, e amanhã voltaremos e daqui o senhor irá à Corinto trazer a sua mala.
Tudo combinado.
A penumbra do crepúsculo descia. Internamo-nos na mata. Chegamos à casa do camponês às 21h e pedimos-lhe pousada. Respondeu-nos não haver acomodações, mas que adiante havia recursos, na Granja Reunida!
Pusemo-nos a caminho, mata densa, noite escura e ameaçando chuva. Chegamos à 1h e pernoitamos.
No dia seguinte, deixei a minha esposa ali e regressei ao Km Mil; dali fui a Corinto buscar a mala e nada!
Então entreguei o conhecimento ao hoteleiro para retirar a mala na estação e despachá-la para o Km Mil onde tratei com o despachante dali que quando a mala chegasse a despachasse para Montes Claros.
Do Km Mil, fomos pernoitar na “Granja Reunida”, onde chegamos às 22h. Era sexta-feira.
O sábado amanheceu e o nosso condutor albardou os animais para continuarmos a viagem. O senhor da Granja, porém, nos avisou de que naquele momento sairia um “Lastro” para Bocaiúva e que o Dr. João Alves estava ali e seguiria também nesse comboio. Persuadiu-nos também a mandarmos o nosso condutor com os animais pela estrada de rodagem até lá enquanto nós iríamos de Lastro, viagem mais cômoda e rápida.
Embarcamos. O doutor muito comunicativo entabulou logo uma palestra conosco:
– Desculpe-me a indiscrição: o senhor para onde se destina?
– Para Montes Claros.
– Muito bem, eu sou monteclarense, vou também para lá!
– Muito nos alegra, doutor, pois já não vamos entrar em sua cidade muito bisonho.
– Muito obrigado. Mas o senhor vem de Belo Horizonte?
– Não, senhor, vimos do Rio.
– Do Rio de Janeiro?
– Sim, senhor, para lhe servir.
– O senhor vem a negócio, não?
– Não, senhor. Sou evangelista e vim a convite do Dr. Crosland para substituir o pastor Jurandir.
– Ah! Conheço-os. O Dr. Crosland é um inglês distinto e muito rico; reside em Belo Horizonte. E o pastor Jurandir é meu cliente. Reside no melhor prédio de Montes Claros, é casado com a filha de um fazendeiro de Boa Vista.
Assim íamos palestrando. Ao chegarmos, porém, ao posto “Engenheiro Navarro”, o maquinista
recebeu um telefonema ordenando-lhe que regressasse já à Corinto. Desembarcamos.
Ali era ainda deserto e não havia nada. O doutor pede ao maquinista do Lastro mandar um automóvel da granja para levar-nos à Bocaiúva.
O nosso raquítico dinheirinho se extinguira. Muito mal chegou para o nosso pernoite na “Granja” nem mais para comprar um pão para matula.
Chega o automóvel, o doutor convida-nos, mas nós sem dinheiro declinamos. O doutor pede, insta, implora que nos levaria ao melhor hotel onde o Dr. Crosland, o pastor Jurandir e os Batistas de Belo Horizonte se hospedavam com todo o conforto, e que descansaríamos bem naquela noite, e que no dia seguinte iríamos juntos a cavalo para Montes Claros, etc, etc.
Chispas de fogo saíram-me do rosto de tanta vergonha, pois o doutor já sabia que eu era evangelista batista, vindo do Rio de Janeiro para substituir um pastor fazendeiro e se descobrisse que não tínhamos um real na algibeira, qual mísero forasteiro, poria dúvidas a nosso respeito!
Por fim, dissemos-lhe inexoravelmente: Doutor, a condução que nos deram foi essa, não queremos ultrapassar as ordens recebidas, todavia queremos merecer um seu favor: Quando alcançar o nosso condutor diga-lhe que traga os animais aqui e ficar-lhe-emos agradecidos. Aí o doutor concordou e chispou. Ficamos eu e a esposa, sem dinheiro e sem o que comer, ainda faltando dois dias para chegarmos a Montes Claros!
Eis que volta o condutor com o seguinte recado:
– O Dr. João Alves manda dizer-lhes que já mandou preparar o jantar para nós e o aposento.
– O senhor trouxe dinheiro? – disse eu ao condutor.
– Não, senhor, o Jurandir não me deu nenhum dinheiro para a viagem
– Então não podemos parar em Bocaiúva. Mas não haverá um morador antes de Bocaiúva?
– Não, senhor. Mas a três léguas adiante mora um capiau.
Parece que era esse o homem das três léguas.
– Vamos, pois ao capiau.
Cavalgamos e metemo-nos na estrada.
O sol já descambara para o seu ocaso quando entramos na praça da cidade onde estava o hotel. O doutor vem ao nosso encontro:
– Oh! Vamos chegar! Já jantamos, mas já mandei preparar o aposento e o demais para os seus, vamos.
– Perdão, doutor, nós estamos atrasadíssimos com a nossa viagem e precisamos prosseguir.
– Mas é uma temeridade meter-se nessa estrada à noite, para os animais. Foi por isso que mandei
preparar tudo aqui!
– Tenha paciência, doutor, nós prosseguiremos. Até amanhã, doutor.
E partimos.
– Mas o senhor tem coragem de meter sua senhora numa noite escura como esta – gritou-nos o doutor à nossa retaguarda.
De súbito, um terrível nó apertou-me a garganta e as lágrimas ardentes marejaram-me os olhos lânguidos de tanta lástima e compunção. Nosso estômago mantido em jejum forçado durante esse dia fazia-nos estugar os passos de nossos
animais na esperança de recuperarmos as forças num bródio em casa do capiau.
Chegamos às 9h da noite. O casebre era de pau-a-pique sem barrear, coberto de sapé e onde cabia apenas o dono, por isso ficamos no terreiro e o homem foi perguntando:
– Vancês trouxero café? O meu acabou-se há dias e tô loco de vontade de tomar uma moóca.
– Não, senhor, hoje só tomamos café de manhã lá na granja, daí para cá não petiscamos nada. O senhor quer fazer o favor de arranjar alguma coisa para comermos?
– Ah, eu tenho uma moitazinha de caiana lá na roça, mas agora não vou lá, não senhor, porque tem cobra.
Era medo dos crótalos o que matava!
Então pedimos-lhe pousada, mesmo bulímicos!
O caipira estende-nos um couro seco de boi no terreiro. Eu e a esposa deitamo-nos com a mesma indumentária, no sereno, sobre o couro enrugado e nauseativo. A rugosidade da pele obrigava-nos a virarmos a noite toda de um lado para outro e as bicharias infernais passeavam pelo nosso corpo.
As nossas vértebras, costelas e ventres amanheceram macerados. Noite cruel! Mas, antes que amanhecesse, prosseguimos, pois não queríamos que o doutor nos alcançasse na estrada. Aconteceu, porém, que os nossos animais não trotavam mais, íam só a passos. Pudera, pois dormiram na soga, no cerradão.
Às 8h, surge à nossa retaguarda o doutor com a sua esposa em dois corcéis nédios e marchadores, dizendo-nos logo:
– Eu não disse que os senhores cometeriam uma temeridade entranhando-se em noite escura neste deserto árido, sem recurso e sem conforto? Olha, nós descansamos e estamos bem dispostos, nosso animais pernoitaram no Jaraguá, estão fogosos e chegaremos em Montes Claros na hora do almoço e os senhores hoje ainda não chegam!
Eu quis corresponder ao doutor com um sorriso, mas os meus músculos faciais se contraíram.
Eles passaram com os cavalos saracoteando as ancas luzidias e desapareceram!
O astro-rei desapareceu deixando-nos na estrada. Chegamos momentos antes do culto. A casa cheia à nossa espera. O pastor radiante entrega-me a palavra. Mas eu, exausto, cabeça oca, declinei da honra inflexivelmente. O pastor parece que se agastou. Leu Provérbios 26.13, aplica-o e por fim entrega-me a igreja.
No dia seguinte, o pastor toma um automóvel e segue a Bocaiúva, destino ao Rio, deixando-me em meditação.
Fiquei com os monteclarenses, povo hospitaleiro e bom, tradicionalmente católico, tolerante e comunicativo.
Anunciamos o evangelho de dia e de noite, na sede, nas “Queimadas”, na “Boa Vista do Mato” e em “Bocaiúva.”
Certo dia bate-nos à porta um jovem e pergunta-nos:
– O senhor é o pastor da igreja?
– Sou encarregado na ausência do pastor.
– Vim pedir-lhe o favor de guardar a minha mala em sua casa porque não tenho confiança de deixá-la no hotel.
– O senhor é crente?
– Não o sou, mas estive em tratamento no Hospital Evangélico no Rio e fiquei conhecendo os crentes que são pessoas de toda confiança.
– Qual é a sua graça? Como se chama?
– Souto Maior, representante da casa comercial do Rio e venho trabalhar nesta praça.
– Sendo assim, a casa está às suas ordens, não somente para guardar as malas, mas também para hospedá-lo (A casa era de sobrado: tinha 15 compartimentos e muitos colchões para hóspedes).
Ele trouxe a mala, contudo ficou no hotel. Tornou-se ouvinte assíduo nos cultos e vinha sempre com um engenheiro que se hospedava no mesmo hotel. Tínhamos imenso prazer em vê-los conosco.
Em dezembro, recebemos o nosso salário de 200$000 que vinha de Belo Horizonte, com o aviso de que era o último pagamento porque o pastor Jurandir já deveria estar em Montes Claros e providenciaria a nossa ida para o Rio. Segundo o teor do aviso, acreditamos que o Dr. Crosland havia remetido dinheiro suficiente ao pastor para a sua vinda e para a nossa ida. Entretanto, o meu colega Waldemar, da Casa Publicadora Batista, certificou-me de que o Jurandir se despedira da Casa para regressar a Montes Claros e não o fez, antes empregou-se nas oficinas do “Jornal do Comércio”.
Por isso que as nossas correspondências se interromperam. Nem o Dr. Crosland sabia do paradeiro do pastor. Portanto, quanto mais dilatássemos a nossa viagem tanto pior, pois o salário acabar-se-ia e ficaríamos no “mato sem cachorro”.
Então, servimo-nos de nosso salário e empreendemos a viagem no menor prazo possível.
Nosso amigo Souto Maior entregou-nos um queijo para levarmos de presente a um seu amigo no Rio, um tabelião.
Chegamos a Bocaiúva, primeira estação da estrada de ferro e ficamos surpreendidos e tristes com a nova de que o tráfego se achava interrompido, porque as chuvas torrenciais danificaram o leito da linha. Aí ficamos no memorável hotel e separamos o dinheirinho para as duas passagens de segunda, de Bocaiúva ao Rio.
À meia-noite do terceiro dia, chegou o trem e às 4h da madrugada regressaria. Nosso dinheirinho não chegou para pagarmos o hoteleiro. Deixamos nossa mala como penhor.
Tomamos o comboio e partimos, sem nenhum centavo no bolso. Ao alvorecer da manhã entra o garçom e começa a gritar: “Olha o café! Olha o moóca!” Todos saboreiam o cafezinho, menos eu e minha esposa. Esvaziava-se uma bandeja e vinha outra. Um companheiro de banco, indiscreto e curioso, pergunta:
– Mas o senhor e sua senhora não tomam café?
– Não, senhor.
– Não gostam de café?
– Gostamos, mas não vamos tomar.
– Olha, pois está quentinho, feito na hora que é uma delícia! Experimentem só!
– Não, senhor, não vamos mesmo tomar café.
– Ora, mas um moocazinho a estas horas faz a gente criar alma nova.
E a rubiácea estava odorífera, penetrava a nossa pituitária aguçando-nos o apetite! Mas estávamos com vergonha de revelar que estávamos sem dinheiro!
De quando em quando ouviam-se os anúncios: “Olha os sanduíches, o pastel, o doce!”
Nunca vimos tanta guloseima como nesse trem!
O queijo que trazíamos cheirava tanto que nos enchia a boca d’água. Às 11h, apareceu o garçom: “Olha o almoço! Quem vai almoçar? Quem quer um sortido?”
E os passageiros que não trouxeram matula escolhiam uma ou outra coisa; e nós, nada!
Mas eu, que de fome já estava mudando de cor como camaleão, segredei à minha esposa:
– Vamos comer o queijo?
– Não é nosso; como vamos comê-lo?
– No Rio compraremos outro e entregá-lo-emos ao tabelião.
– Mas o que o homem nos entregou em confiança foi este, e é este que temos de entregar e não outro.
Lá pelas 14h, fiz a segunda tentativa para ingerirmo-lo, pois devia estar sápido! Ela continuou irredutível que não e não.
À hora do jantar, tentei, pela terceira vez, deglutirmos a dádiva do tabelião. A mulher, porém, persistia no seu estoicismo cru.
Ante a sua inflexidez também fiquei estóico. Não mais falei no queijo.
Viajamos a tarde toda e a noite inteira, e já na hora do almoço chegamos ao Rio lívidos de sono e fome. Fomos a Montes Claros com o pé esquerdo e voltamos com o pé esquerdo.
Na Convenção Batista Latino-Americana, em 1930, estávamos ouvindo o discurso do Dr. Truett.
Alguém bate-me ao ombro: “Olha, já sou crente”.
Era o Souto Maior. Veio-me à lembrança o queijo.
Se aquela fome contribuiu para a sua salvação, bendita foi aquela fome. E nunca mais o vi.
Caro leitor, esse é um texto que faz parte da Autobiografia do Pr. João Gregório Urbieta. Foi disponibilizado aqui por falta de espaço no livro Urbieta & Sherwood – Pioneiros na obra de evangelização em terras mato-grossenses.
Legal! Espero que seja uma bênção para os leitores.
Abraço, Trapp